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Obrigado, Zico!


A primeira lembrança que tenho vem da tal cozinha de fora. É porque na casa da vovó tinham duas cozinhas. A cozinha que mais tenho recordação é essa, a de fora. Porta surrada, meio azul desbotado, fogão a lenha envernizado de vermelho e manchado de fogo, uma mesa com um plástico grosso, uma fruteira e frutas de mentira, um armário de verdade e velho e uma janela pequena que insistia em não abrir. E lá em cima, no canto, longe do alcance dos netos, que eram muitos, o rádio.  Um caixote enorme, como botões grandes e vozes grossas, ásperas e emocionantes. Tudo isso sob as telhas de amianto escuras por causa da fumaça.

Quando vovô ligava o tal rádio, do qual confesso que um dia tive medo, tinha abraço, tinha beijo, tinha riso, tinha choro, tinha vida. Foi ali, naqueles pequenos metros quadrados, que eu senti e descobri o significado de emoção.  E mesmo que a gente quisesse sair, e a gente não queria, não tinha como: Vovô não deixava. E mesmo que eu passasse por entre as pernas dele, e eu não queria passar, na porta havia dois “guarda-roupas” enormes que atendiam por “Tios”. Impossível passar, impossível sair da cozinha de fora depois que ligavam o rádio.

E quando Waldir Amaral gritava: É falta na entrada da grande área! Vovô, a quase 500 km do Maracanã, antecipava o locutor e dizia: Aí vem Zico! Quase que em eco Waldir Amaral narrava: Aí vem Zico! Neste momento o silêncio que já era ordem, se tornava lei. O único som presente era o das lenhas estalando no fogão. Na cozinha de fora, na de dentro, na horta, não se ouvia nada a não ser a voz do rádio. “Atenção, Zico se prepara para a cobrança. A barreira é formada a dois, três passos da linha da grande área. O galinho de Quintino ajeita a bola. Correu, atirou, bateu, é gol!” Meu cérebro insiste em não esquecer essa vinheta: Flamengooooooo! Volta o narrador: Zico, o galinho de Quintino, faz a alegria da torcida. E fazia mesmo! Era neste momento que a palavra família fazia sentido. Eu largava o jogo de botão que segurava na mão suada e ansiosa e abria os braços para receber o abraço do Vovô. Na cozinha de dentro, as tias gritavam. No terreiro, vovó erguia os braços aos céus e, lá dentro da cozinha de fora, era festa. Os tios se abraçavam, os netos bagunçavam e a minha mente capturava tudo à minha altura, ou seja, na altura da cintura, que era de onde eu via as mãos calejadas de vovó se encontrando em forma de aplausos. O fogo da lenha que estalava e soltava faíscas como se fora fogos de artifício, a mão da tia mais velha que abaixava o som do rádio e perguntava: Quem fez pai? E em coro, tios, netos, irmãos ecoavam: Zico! O som voltava ao volume máximo, os pulos continuavam, os vizinhos gritavam e a cozinha de fora parecia a geral do Maracanã. É festa, é gol de Zico, tem abraços, tem terço na janela, tem choro e gosto de emoção.

A vida, como os acréscimos do segundo tempo, passou rápido e hoje i-pads, i-phones e televisões super sofisticadas nos separam de um rádio velho e de um craque de quatro letras.

Mesmo assim, obrigado, Zico! Você foi mais que importante, não só pelos títulos, dribles e gols, mas por reunir minha família uma vez por semana por muitos anos, ali, naquele espaço simples e talvez desajeitado. Obrigado, Zico, pelo cheiro de lenha queimada que impregnava nas roupas, pelos apertos e tapas dos tios, pelo sorriso da vovó, pelo grito do vizinho, pela cozinha de fora e pelos abraços do Vovô que hoje só conquisto em meus sonhos.


Parabéns, galinho!

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